Meu Relato
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Este é um pedido de socorro em minha luta por justiça
Um monstro. Um assassino frio, um feminicida. Foi assim que fui descrito pela imprensa nos últimos anos. Fui condenado na primeira manchete de jornal e sigo condenado até hoje, desta vez pelo tribunal do júri. Condenado a mais de 18 anos de prisão pela morte de minha esposa. Condenado por um crime que não cometi. Condenado mesmo com provas que demonstram diversos erros do Estado e o fato de que não fui autor do crime.
Parte de mim se foi. É impossível descrever em palavras o sofrimento que passei, mas é possível descrever para vocês como esse sofrimento foi estendido desde o dia 18 de julho de 2016 até hoje, enquanto não apenas sofro por não ter conseguido evitar o suicídio de minha esposa, mas também por ter sido injustamente considerado como culpado por tirar a vida de alguém que tanto amava.
Se fosse um filme ou série, eu seria acusado, julgado e, no último momento, inocentado após o júri reconhecer a ausência de provas, as falhas no processo legal, na perícia, a falta de motivo e tantas outras incongruências que foram ignoradas para que fosse possível me condenar. Não é um filme. Nada disso impediu a condenação. Nem mesmo a falta de domínio do Ministério Público em sustentar dois disparos quando, na verdade, só havia vestígio de um. Na última hora, não houve um veredito de inocência, mesmo com todas as provas dela. Culpado. Culpado. Culpado.
E ainda assim, insisto: Eu sou inocente!
Eu não matei Priscylla. Eu morri com Priscylla. A vida da forma como eu conhecia e enxergava se foi junto com ela.
Era madrugada de segunda, depois de um domingo que posso chamar de normal, um dia com várias atividades, porém tranquilo. Eu havia adormecido enquanto Priscylla terminava de arrumar a casa. Havia acordado muito cedo e terminei pegando no sono assistindo TV. Um barulho alto me despertou. Não tenho sono leve, então aquilo realmente me chamou a atenção.
Despertando, percebi que ela não estava ao meu lado na cama. Em minha cabeça, eu havia cochilado apenas por alguns minutos. Devia ter passado pouco tempo, afinal ela não estava ao meu lado, me abraçando, como era de costume. Me levantei, ainda zonzo de sono, achando que nossos gatos poderiam ter derrubado uma telha ou algo assim, o que me fez prontamente chamar por Priscylla para perguntar o que havia acontecido. Chamei novamente. Nada. Cambaleei pela casa a procurando, cruzei a cozinha e, por não a encontrar, terminei indo até a porta que dava para o quintal, que estava aberta. Se tivesse sido realmente uma telha caindo, faria sentido ela ter ido ver o que havia acontecido, mas por que não me respondia?
Foi quando a vi.
Ela estava de bruços no quintal, já no limite de nosso terreno, longe da iluminação da área de serviço.
Sem entender o que tinha acontecido, chamei novamente por ela, correndo em sua direção. O ambiente estava escuro, apertei os olhos enquanto levava minhas mãos até sua cabeça. Senti algo molhando minhas mãos. Quente. Viscoso. Sangue.
Entrei em pânico. Gritei por socorro, pedindo ajuda aos vizinhos enquanto corria para buscar meu celular. Eu precisava chamar alguém, precisava de socorro. E essa foi minha primeira reação imediata: buscar ajuda. Não compreendia o que tinha acontecido, mas o mais urgente era salvá-la. Desesperado, percorri a distância entre o quintal e o quarto, alcançando o celular em cima da cama. Enquanto tentava desbloqueá-lo, com a mão e os dedos sujos de sangue, tremendo e mal conseguindo respirar, tive outro choque. O cofre do nosso quarto, visível em uma das paredes, estava entreaberto.
Eu e Priscylla éramos atiradores desportivos, praticávamos tiro há mais de um ano e meio e, infelizmente, tínhamos armas em casa. Duas delas haviam sido herdadas de meu pai. A outra, que não estava no cofre onde deveria estar, uma pistola 380, havíamos comprado há pouco mais de um ano.
A arma. Não. Priscylla... o que me passou pela cabeça não podia ser verdade. Não, não podia ser. Ela... ela não faria isso.
Voltei para o quintal, com o celular que tinha apanhado no quarto, ainda gritando por socorro, enquanto tentava ser atendido pelo SAMU. Corri para perto dela para virá-la de lado. Eu precisava ver seu rosto. No escuro, meu pé esbarrou na arma.
Eu apanhei a arma e a memória motora entrou em ação. Fiz aquilo que sempre treinávamos. Removi o carregador, dei um golpe no ferrolho para garantir que não haveria mais nenhuma munição na câmara e a coloquei em um anteparo mais próximo. Era o procedimento padrão de segurança. Lembro de ter percebido que a pistola estava em pane. O ferrolho não havia ciclado completamente.
Eu sei, eu não deveria ter tocado na arma, não deveria tê-la movido de lugar, mas em meio àquela situação, eu agia no automático enquanto tentava salvar a vida de minha esposa. Em momento nenhum pensei em “não alterar a cena do crime”. Naquele momento, isso não fazia a menor diferença! Eu só queria salvá-la. Eu só queria que aquele pesadelo não fosse real.
Ela estava agora de lado. Eu via seu rosto. Eu ouvi um ronco. Resquício de uma respiração forçada, pensei. Ela lutava para sobreviver, tentando buscar algum ar. Tudo ao meu redor estava nublado. Tudo.
As lágrimas escorriam do meu rosto enquanto eu desistia do SAMU, que não atendia. Liguei para os bombeiros e, mesmo desesperado, ouvi apenas que deveria ligar novamente para o SAMU. Na sequência, liguei para a Polícia Militar e o atendente, depois de várias perguntas, anotou nosso endereço e disse que estariam a caminho. Corri até a casa de um vizinho, implorando por ajuda, até que ele veio em meu socorro, acompanhado de mais uma pessoa. Tentamos levar Priscylla para a frente da casa, mas não conseguimos ir muito longe. O tempo estava passando, o socorro não chegava, o barulho de ronco já não existia. Será que ela ainda respirava? Eu não conseguia sentir o seu pulso, mas não sabia se era a ausência ou se eu não estava conseguindo medir direito com minha mão trêmula. A deixamos em uma posição em que eu conseguisse iniciar a massagem cardíaca para tentar ganhar tempo. Foram 30 minutos sem parar. Já não sentia os braços quando a Polícia Militar chegou. O SAMU só chegou bem mais tarde, apenas para constatar o óbito. Quando chegaram, eu já estava na varanda, havia sido encaminhado para lá por um oficial da Polícia Militar e, na varanda, já não tinha acesso ao quintal onde tudo havia ocorrido.
Já era dia claro quando a Polícia Civil chegou. O delegado conversou rapidamente comigo enquanto a perícia era realizada. Em um curto espaço de tempo, terminaram o procedimento, levando a arma, nossos documentos e um DVR das câmeras que tínhamos na casa. E levaram Priscylla.
Enquanto carregavam o corpo inerte de minha esposa, o delegado me orientou a ir até a Central de Polícia retirar nossos documentos, pois eu iria precisar deles para os procedimentos junto ao IML. Eu ainda estava anestesiado. Incrédulo.
Minha mãe, que já havia chegado à minha casa, perguntou ao delegado se podia pegar um pouco de água para mim, para me acalmar. “A casa está liberada”, ele disse. Havia sangue por todo lado. Meus pés haviam marcado todo o piso, minhas mãos deixaram marcas nos interruptores, nas paredes e no lençol de nossa cama, onde eu havia pegado o celular. Eu nunca irei esquecer o que vi e vivi naquelas poucas horas.
Minha mãe tentava limpar a casa quando meu irmão, um amigo que havia vindo em nosso socorro ao saber do ocorrido, e eu fomos ao quintal pela primeira vez após a perícia. Uma luva, deixada pelos socorristas ou peritos, estava largada próximo ao local onde eu e os vizinhos deitamos Priscylla. Havia sangue coagulado no chão, várias marcas de pegadas e um único estojo deflagrado. A cápsula da bala que tirou a vida de minha esposa havia sido largada pela perícia, mesmo estando ali, visível, aos olhos de todos.
Já eram 10h da manhã quando cheguei à Central e retirei nossos documentos para, na sequência, ir até o IML. Após a liberação do corpo – demorei a me acostumar com esse termo, admito – fui até a funerária resolver os trâmites legais. Meu sentimento era como se estivesse vendo tudo aquilo de fora, distante da realidade, como se fosse outra pessoa ali, cuidando da burocracia necessária para enterrar uma pessoa com quem dividi a vida por 16 anos, a quem amava. Hoje entendo que essa sensação de irrealidade é uma forma de lidarmos com essa situação sem desabarmos completamente.
Mas eu desabei. Desabei ao chegar à casa dos pais dela. Ao chorar junto a eles. Ao pedir desculpas ao pai por não ter cuidado da nossa menina como eu havia prometido anos antes. Mesmo diante de tanta dor, foi necessário tomarmos algumas decisões que envolviam o velório, que ocorreu naquele mesmo dia, e o sepultamento, que iria ocorrer no dia seguinte.
O velório foi doloroso. Algumas pessoas reagem de formas diferentes e minha ficha parecia ainda não ter caído completamente. Nada daquilo parecia ser real. Amigos e familiares não podiam deixar de questionar o que poderia ter levado Priscylla a isso. E, como não podia deixar de ser, alguns deles se questionavam o que de fato havia acontecido. É natural, não queremos acreditar que uma pessoa a quem amamos e admiramos possa ser capaz de tirar a própria vida aos nossos próprios olhos, bem debaixo dos nossos narizes. E esse foi o mesmo questionamento que levou a polícia à porta do cemitério, no dia do sepultamento, para me abordar.
Naquele momento, não avaliei a situação como algo planejado para mandar uma mensagem ou alimentar uma manchete de notícia, mas hoje, em retrospecto, penso que poderiam ter me abordado em qualquer outro momento, afinal eu estive na presença deles por duas vezes no dia anterior, eu os chamei e estive disponível a todo momento. Fui levado do enterro de Priscylla para a presença da delegada. Dei adeus ao meu amor e “oi” para minha algoz.
Recebi voz de prisão durante o depoimento, acusado de tirar a vida de minha esposa. Fiquei aterrorizado, não pela prisão em si, mas pelo fato de estar sendo acusado de tirar a vida de alguém que amo. Aquilo não fazia sentido algum. Nenhum. Tínhamos uma vida alegre e tranquila, sem brigas, sem disputas, sem traições. Éramos amorosos, apaixonados mesmo, amigos e cúmplices em absolutamente tudo. Ela não era só minha esposa, era minha companheira de vida. Tínhamos planos e sonhos. Não havia motivo, nenhum, para que eu pudesse fazer qualquer mal contra ela. E, ainda assim, eu colaborei. Eu sou inocente, eu sabia disso, então, apesar do terror daquele momento, eu tinha fé de que iriam chegar à única conclusão possível. Entreguei meu celular, dei a senha de desbloqueio, acesso às nossas mensagens pelo WhatsApp e ainda ofereci acesso às minhas contas das redes sociais e de e-mail. Indiquei onde estava o celular e o notebook dela. Eu fiz tudo que me foi pedido e solicitado, certo de que a verdade iria prevalecer. As nossas mensagens no WhatsApp nunca apareceram. Nossas mensagens de SMS ainda foram localizadas em seu chip. Combinando jantares. Ela me atualizando como seu contato de emergência no novo celular. Para essas, fecharam os olhos. Não cabiam no script de um falso relacionamento tumultuado que já circulava em toda mídia. Certamente porque também não eram interessantes ao personagem monstruoso que havia sido montado e propagado.
Um dia após a minha prisão, eu percebi que não haveria uma investigação isenta. Fui exibido para a imprensa como um monstro, como um troféu conquistado pelo trabalho de excelência do Estado. Ali eu ainda não sabia, mas também não haveria processo ou julgamento justo. Haviam decidido que haveria uma condenação por feminicídio, um crime de ódio cometido com base no gênero da vítima, que há pouco havia sido inserido no Código Penal, onde eu seria o perpetrador. Onde Priscylla seria a vítima. Eu já estava condenado desde o dia em que me prenderam, apenas não sabia disso. Fariam o possível – e o impossível – para me condenar por um crime que eu não cometi. E contariam com a opinião pública para isso.
Fiquei preso dali até o final da instrução, o que somou mais de um ano privado de liberdade por um crime que não cometi. E as provas? Sequer tinham sido todas periciadas até aquele momento, quando a justiça já havia decidido que eu iria ser julgado pelo tribunal do júri.
A denúncia do Ministério Público narra que eu efetuei dois tiros contra minha esposa. Um grave erro. Havia apenas um estojo deflagrado, próximo ao lugar onde Priscylla havia caído, e, segundo as perícias de local de crime e do IML, uma lesão de entrada e uma lesão de saída, causadas por um único tiro. Mesmo um erro óbvio como esse foi mantido no processo, exposto para a imprensa, para meus amigos, familiares e, posteriormente, para o júri. Quem acreditaria em um suicídio com dois tiros? Eu certamente não. Mas a habilidade de nutrir uma narrativa única já estava consolidada há mais de 7 anos, mesmo que essa narrativa não coincidisse com a realidade, a vivida e a provada.
Todo o processo, da acusação ao julgamento, foi repleto de falhas que buscavam unicamente impedir minha defesa e garantir minha condenação. Documentos e provas que sumiram ou tardaram a aparecer durante o processo, sequer tivemos fotos nítidas da perícia por anos, mas estavam amplamente disponíveis em redes sociais dos peritos oficiais, mas não para minha defesa. Aliás, a minha defesa só teve acesso a estas fotos, que permitiam ver as características da lesão, que foram descritas de formas diferentes no laudo do corpo e da perícia, depois de uma ordem do Tribunal de Justiça. Houve restrição de acesso a documentos e provas por parte de minha defesa, proibição de envolvimento de peritos contratados pela defesa e tantos absurdos que se acumulavam, minando minha esperança de um julgamento justo e de chegarmos à verdade.
Foram 7 anos lutando para me defender. Foram 7 anos convivendo com a dor da perda e uma outra dor, menor, mas ainda assim agressiva e intensa, de ser acusado de um crime contra alguém que amava e que eu não cometi.
Devagar, reconstruí minha vida enquanto esperava julgamento. Me apaixonei novamente, consegui um emprego, fiz novos amigos e encontrei sentido em uma nova vida, mas não sem as dores dessa perda. Nunca escondi o que estava passando, nunca fingi que nada acontecia, sempre mantive a fé na justiça e fui fiel àquilo que digo e reforço aqui: eu não matei Priscylla. Durante esses anos, vi o choque no olhar das pessoas que conheci após aquele dia e que tomavam conhecimento de tudo que estou narrando aqui. Acreditava que, legalmente, seria necessário o Estado provar que eu fui o culpado enquanto, na verdade, eu é quem precisava provar minha inocência a uma justiça nem um pouco interessada em ao menos avaliar as provas, mesmo todas elas estando lá.
Fui julgado em outubro do ano passado (2023). Condenado, fui imediatamente preso e encaminhado para um presídio. Não houve contagem de votos, apenas o entendimento de que a maioria havia votado pela condenação, mas minha defesa acredita que foram 4 votos a 3. Pouco mais de 40 dias depois consegui um HC, fui solto e passei a viver a angústia de não saber até quando poderia estar com minha família. Hoje, se você está lendo este texto, devo estar preso novamente, condenado a mais de 18 anos por um crime que não cometi.
Priscylla não deixou nada escrito. Nenhuma justificativa. Ela simplesmente tirou a própria vida. Em 2016, quando aconteceu, eu não fazia ideia do que poderia ter levado ela a tomar tal decisão. Eu não conhecia nada sobre suicídio, depressão e sofrimento psicológico. Não sei o que ela estava vivendo naquela madrugada. Sinto-me culpado, sim, por não ter percebido os sinais de que ela precisava de ajuda, por não ter sido o ouvido que ela precisava, o ombro acolhedor. Eu posso ter falhado como companheiro por não enxergar seu sofrimento, mas eu não puxei aquele gatilho. Naqueles últimos anos, eu me dedicava de forma doentia ao trabalho, o que fez de mim um marido ausente em alguns momentos. Viagens e períodos seguidos de muitas horas de trabalho. Essa é a culpa que carrego, a de não ter salvado a vida dela antes do ocorrido, de não ter conseguido salvar a vida dela depois. De tê-la apresentado ao tiro. De tê-la ensinado a manusear armas de fogo. De manter armas em casa, em nosso quarto. De acreditar que a arma de fogo era o melhor mecanismo para nossa segurança. São coisas, pequenas ou grandes, que, juntas, me consomem. Porém, não carrego a culpa da violência. Eu não seria capaz de machucar Priscylla. De forma alguma. Quando ela faleceu, tinha 35 anos, eu tinha 30, e tínhamos uma vida inteira pela frente, cheia de planos. Foram 16 anos de uma relação pacífica, como a própria mãe dela declarou em depoimento: “ele era um amor com a minha filha e ela apaixonada por ele”. Éramos assim mesmo!
Eu não tinha motivo, porém ela também não, eu achava. Depois descobri que ela estava se afogando em dívidas de uma empresa que seu pai mantinha em seu nome, da qual ela não tinha nenhuma participação. Teria sido isso? Teria sido uma depressão que ela conseguiu esconder ou que eu era incapaz de enxergar? Seria a endometriose e nossa dificuldade para engravidar por questões de saúde e sobrepeso impedindo o maior sonho de sua vida que era ser mãe? Seria o bullying que ela sofreu anos antes na escola por conta do seu peso? Nunca terei certeza, mas o que só descobri depois apontava uma direção. Tudo isso estava no processo, mas a justiça fez questão de não enxergar ou simplesmente ignorar.
Mas não foram só as provas da nossa boa relação que ignoraram. Lá atrás, em 2016, logo depois que fui preso, uma perícia complementar dos órgãos oficiais foi realizada. Isso ocorreu dois dias depois da morte de Priscylla. Naquela ocasião, a perícia localizou e recolheu um projétil, um estojo deflagrado – aquele que eu, meu irmão e meu amigo vimos – e uma toalha suja de sangue. Parece absurdo que não tenham sido recolhidos na primeira perícia? Sim, é absurdo. Mais um erro de muitos. Além destes objetos, ignoraram respingos de sangue na parede. Estes respingos ajudariam a entender a distância do disparo e trajetória. Coisas que só fui compreender muito tempo depois.
A perícia complementar, assim como a inicial, também descartou o suicídio por ausência de efeitos secundários do tiro – a queimadura de pólvora resultante de um tiro a queima-roupa, ainda que eles não tenham visto e examinado o corpo da minha esposa – e tendo as fotos da perícia do IML "sumido". Nossas câmeras, que eu havia indicado a existência ao delegado e entregado o DVR na manhã da morte de Priscylla, já não estavam gravando nada há alguns dias, segundo laudo pericial. Concluíram ter sido um tiro efetuado à distância, certeiro, em um ambiente sem luz, e, como estávamos sós em casa, fui apontado, julgado e condenado como um feminicida. Trajetória do tiro? Não determinaram. Anteparo onde o projétil atingiu após sair do corpo dela? Não analisaram, muito menos fotografaram. Fatores como a possibilidade de a toalha ter sido usada por ela para abafar o tiro, o que evitaria a queimadura de pólvora e a existência de resíduo de pólvora na mão dela – eu não fui testado porque, segundo a Polícia Civil, que deixou de fazer o teste no dia do ocorrido, não havia sentido em realizá-lo 24h depois, o que é mentira – foram ignorados, assim como as poucas chances de um único tiro ser dado no escuro com aquela precisão e àquela distância.
Uma mulher morreu. Uma mulher maravilhosa e superinteligente tirou a própria vida, mas precisavam entregar um feminicida para a imprensa e para a opinião pública. Voltar atrás e reconhecer os inúmeros erros que o Estado cometeu nunca foi uma opção para eles.
Eu não matei Priscylla!
Nunca a agredi, nunca tivemos grandes desentendimentos, nunca houve em nossa vida violência de qualquer tipo.
A perícia oficial falhou, o Ministério Público inventou um segundo tiro, a justiça cerceou minha defesa e eu fui condenado.
Minha defesa tem feito tudo que está ao seu alcance até aqui. Ainda em 2016, Dr. Levi Inimá de Miranda, referência nacional em Medicina Legal e em Balística e perito legista aposentado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, analisou os laudos das perícias oficiais que naquele momento tínhamos acesso e escreveu mais de 100 páginas de um laudo preliminar apontando diversas falhas graves no trabalho realizado pelos órgãos do Estado. Ele foi bem duro em suas palavras e, aqui, houve uma grande união dos profissionais envolvidos para desqualificar seu trabalho por conta disso. Talvez o principal apontamento que Dr. Levi fez foi o de demonstrar que a perícia de local de crime descreveu as lesões de entrada e saída com características bem distintas das descritas no laudo tanatoscópico realizado no IML. Um laudo descreve que uma lesão tinha bordas irregulares em formato estrelar e o outro descreve que a mesma lesão era ovalar, uma diferença aparentemente crucial para determinar a natureza do tiro. São palavras difíceis para dizer que o formato do ferimento pode indicar se o tiro foi realizado a curta ou longa distância. Nem isso a perícia foi capaz de precisar. Nem fotos em qualidade dessa lesão haviam disponíveis para que ele avaliasse. Ainda assim, eram gritantes as falhas ali. Eu não o conhecia e, infelizmente, ele faleceu antes que eu pudesse agradecê-lo pelo trabalho prestado.
Ainda em seu trabalho, Dr. Levi solicitou as fotos do laudo de local de crime em mídia digital e em alta resolução, já que tínhamos apenas as fotos impressas no processo, que era físico naquela época, além das fotos do exame tanatoscópico, exumação e nova perícia tanatoscópica, além de uma série de outras perícias. Infelizmente, a justiça nem mesmo analisou o que foi solicitado naquele momento.
Em 2017, explodiram na imprensa paraibana notícias sobre o sucateamento do IPC pessoense, que já se arrastava há alguns anos. A falta de reagentes, ferramentas e materiais adequados para a realização de perícias era algo rotineiro. O Ministério Público do Trabalho da Paraíba fechou o IPC de João Pessoa naquele ano após constatar diversas violações no prédio do órgão, onde também funciona o IML da cidade. Peritos processaram o Estado naquela época por conta das condições de trabalho.
Com a morte do Dr. Levi, recorri a outro médico legista, Dr. Antonio Nunes Nunes Pereira, perito médico legista com vasta experiência na Polícia Civil do Piauí. Através do excelente trabalho dos meus defensores, alguns dias antes da data do julgamento, já em 2023, conseguimos acesso às fotos realizadas pela perícia de local de crime. Já as fotos do laudo tanatoscópico, aquele realizado no IML, nunca nos foram fornecidas.
Com as fotos recém-obtidas, Dr. Antonio percebeu que a toalha, aquela recolhida alguns dias depois da morte de Priscylla pelos peritos que realizaram a perícia complementar, continha manchas escuras compatíveis com pólvora e rasgos compatíveis com perfuração por projétil de arma de fogo. Sete anos depois, começávamos a entender a dinâmica de como Priscylla teria realizado aquele tiro. A utilização da toalha como abafador reduziu o som do disparo, e isso explica por que os vizinhos, em depoimento, disseram não ter ouvido ou acordado com o barulho. Explica por que eu acordei achando que teria sido uma telha caindo, uma ação com um ruído bem inferior a um tiro. Também explica por que as perícias de local de crime e tanatoscópica não encontraram os vestígios secundários do tiro, como queimaduras e pólvora incrustada na pele. Só descobrimos isso em 2023. A perícia oficial tinha o dever de ter visto isso já em 2016. Não viram. Não se importaram.
Minha defesa ainda solicitou um laudo a um grupo de peritos com especialização em Química do Recife. Precisávamos demonstrar se era ou não possível que Priscylla tivesse resíduo de chumbo em sua mão sem que tivesse sido ela própria a realizar o disparo, já que a investigação concluiu que isso ocorreu porque ela utilizou a mão para se defender, esticando o braço em direção ao atirador. Não existia lesão na mão, perfuração ou queimadura, apenas o laudo positivo do exame residuográfico de chumbo que, à época, usava um reagente chamado Rodizonato de Sódio. Os peritos pernambucanos realizaram um experimento prático utilizando armas de diversos calibres e características, atirando em pedaços de papel a diferentes distâncias, e aplicando o Rodizonato de Sódio em seguida para ver se, e quais áreas, apresentariam a coloração característica para um positivo por contaminação de chumbo. A conclusão indicou que não seria possível, em nenhuma distância que não fosse a queima-roupa, que existisse contaminação de chumbo além do local exato onde o projétil, de chumbo, atravessa. Então, não teria como Priscylla ter esse metal em sua mão por um gesto de defesa tal qual descrito na investigação com um tiro a distância. A defesa tentou apresentar esse importante resultado durante o julgamento, porém o representante do Ministério Público tratou de desqualificar e ridicularizar totalmente o trabalho realizado.
A sessão de julgamento, o júri em si, foi seguida de desrespeitos aos profissionais da minha defesa. A memória do Dr. Levi foi achincalhada pelo promotor. Dr. Antonio foi constantemente interrompido e podado de fazer a apresentação que havia preparado e que iria demonstrar, de forma bem didática, a sucessão de erros cometidos pela perícia oficial. O representante do Ministério Público chegou ao ponto de indicar aos jurados que Dr. Antonio só estava ali e trazia aquelas informações porque estava sendo pago para dizer aquilo, esquecendo-se que ele mesmo também estava sendo remunerado pelo Estado para fazer o seu trabalho.
Naquela semana, os jornais paraibanos noticiavam a morte trágica de duas mulheres vítimas de seus companheiros, que tornaram-se seus algozes. Todos aqueles jornais estavam de plantão durante o júri. Eu nunca tive chance de demonstrar minha inocência. Meu direito de defesa foi cerceado. Eu fui condenado por um crime que não cometi, não pelo júri, mas por quem decidiu que eu seria condenado pelo júri independentemente de provas ou do devido processo legal.
Essa é uma versão curta de minha história. Não sei quantos de vocês consumiriam um texto maior que esse. Existe tanto a ser dito ainda, tantos detalhes técnicos das perícias que eu não saberia nem mesmo descrever, mas busquei resumir para atingir o maior número de pessoas.
Pelo amor de Deus, eu preciso de ajuda!
Eu imploro por ajuda!
Preciso que alguém dê visibilidade para esse processo, que me ajude a fazer o Estado avaliar os erros ocorridos. Que haja um novo julgamento. Justo. Eu não temo a justiça, temo sim a injustiça. Temo a força do Estado contra um inocente apenas para acobertar uma sequência de erros, provar um ponto ou alimentar a fome da mídia por dramas repletos de sangue em busca de audiência.
Estou pagando por uma sucessão de erros do Estado. Me submeto a qualquer análise, a qualquer interrogatório, a qualquer coisa.
Minha família não merece passar todos estes anos me acompanhando na prisão. Eu não mereço ser lembrado como um monstro. Priscylla não merece ter sua memória lembrada como alguém que foi submetida a um relacionamento tóxico e acabou por ser mais uma vítima de feminicídio. Essa não era ela. Ela era uma mulher forte, livre, dona dos seus sonhos e planos. Priscylla nunca precisou fazer algo que não quisesse. Priscylla jamais seria vítima de violência de forma tão passiva como na história inventada e contada pelo poder público.
Coloco tudo à disposição de qualquer um. Posso passar o resto da minha vida preso, mas continuarei defendendo a verdade: Eu não matei Priscylla. Eu não dei aquele tiro e o que está acontecendo não é justo!
Carlos Eduardo Carneiro Ferreira Filho